Auditorias in loco em fornecedores de IFAs: CP 683 x RDC 301

Por: Maiara Rigotto, em 02 de outubro de 2019.

Frequentemente durante conversas sobre o novo marco regulatório de Insumos Farmacêuticos Ativos (IFA), percebo uma pequena confusão de conceito de aplicação, tema para o qual gostaria de apresentar neste 'textão' minha opinião, bem como colocar em discussão para aqueles que entenderem de forma distinta.

Trata-se da relação entre a necessidade de realização de auditorias in loco proposta pela Consulta Pública 683, e a obrigatoriedade destas na já publicada (e quase vigente) RDC 301, que trata das Boas Práticas de Fabricação.

I. Obrigatoriedade de Auditoria in loco nos fabricantes de IFA, segundo a CP 683/2019:

Dentre os pontos polêmicos apresentados nas propostas de CPs sobre o novo marco regulatório de IFA, está a necessidade de auditoria in loco nos fabricantes de IFA como pré-requisito para: 

  1. o registro de novos medicamentos, e
  2. a substituição/inclusão de novo fabricante de IFA (quando este não for no mesmo grupo farmoquímico).
Tais requisitos constam tanto no Art. 4º que propõe a inclusão do Art. 23-A na RDC 200/2017 (Registro de medicamentos novos, similares e genéricos); como na alteração da 'Tabela 1a', da RDC 73/2016. 

Para facilitar, segue transcrição dos textos:

"Art. 23-A No ato do protocolo de pedido de registro de um medicamento, o solicitante do registro deverá apresentar as seguintes informações referentes ao IFA: 
(...)
II - Declaração assinada pelo responsável técnico do solicitante de registro do medicamento, ou por pessoa por ele designada, atestando que a fabricação do IFA é conduzida de acordo com o DIFA e que as boas práticas de fabricação de IFA são aplicadas em todas as etapas do processo de fabricação, a partir da introdução dos materiais de partida; e 
(...)
§ 4º A declaração de que trata o inciso II deve ser baseada em auditoria de boas práticas de fabricação conduzida sob responsabilidade do solicitante de registro do medicamento."

"Documentação (Tabela 1a do anexo II) 
9. Documentação prevista na Subseção I da Seção V do Capítulo III da Resolução - RDC nº 200, de 26 de dezembro de 2017."

Ou seja, com a obrigatoriedade da apresentação desta declaração já no protocolo do processo de registro de um novo medicamento, ou da inclusão de um novo fabricante de IFA, a auditoria de qualificação para aprovação deste fornecedor deve ser realizada ainda durante a fase de desenvolvimento deste 'novo produto', ou ainda durante a prospecção do fornecedor. 

Mas mais importante que isto, é importante atentar que esta não é 'apenas' uma auditoria para qualificação em BPF, ela é uma auditoria que deve gerar um relatório que dê segurança suficiente ao Responsável Técnico do registro do medicamento para assinar a declaração que atesta que a fabricação do IFA é conduzida de acordo com o DIFA e que as BPF são aplicadas em todas as etapas de fabricação.

Esta nova atividade gera um novo 'passo' que deve ser contabilizado no processo geral do registro ou pós registro planejados. E por isso é muito importante que as empresas tenham mapeados o quanto antes todos os seus projetos para novos produtos já em andamento ou para o próximo período para que possam cumprir com tais requisitos. Inclusive como forma de pleitear maiores prazos para a transitoriedade se for o caso.

É fundamental considerar neste mapeamento, o período de transitoriedade proposto no Art. 9º, e complementado nos Art. 10 e 11. Lembrando que tal período não está sendo considerado para os IFAs constantes nas Instruções Normativas (IN) 15/2009 e 03/2013.

Art. 9º É facultada a adoção dos requisitos do art. 23-A e do art. 23-B, incluídos por esta Resolução na Resolução – RDC nº 200, de 2017, para petições de registro e pós-registro de medicamento, cujo lote do medicamento seja fabricado antes ou até 18 meses após a publicação desta Resolução, desde que a petição seja protocolada até 36 meses após a publicação desta Resolução.

Art. 10. Para as petições de registro de medicamentos contempladas no período de transição previsto no caput do art. 9º e cujo solicitante opte por não adotar os requisitos dos art. 23-A e 23-B da Resolução – RDC nº 200, de 2017, devem ser apresentados os seguintes documentos sobre o insumo farmacêutico ativo (IFA):
(...)
Art. 11. Para as petições de pós-registro de medicamentos contempladas no período de transição disposto no caput do art. 9 º, mudança b (Substituição ou inclusão de novo fabricante de IFA) da tabela 1a (Substituição ou inclusão de novo fabricante de IFA) da Resolução - RDC nº 73, de 2016, e cujo solicitante opte por não adotar os novos requisitos da Resolução - RDC nº 73, de 2016, alterados por esta Resolução, devem ser apresentados os documentos dispostos no art. 10 desta Resolução, em substituição ao documento 9 da tabela 1a (Substituição ou inclusão de novo fabricante de IFA) da Resolução - RDC nº 73, de 2016.

II. Obrigatoriedade de Auditoria in loco nos fabricantes de IFA, segundo a RDC 301/2019:

Colocando de lado a discussão que está sendo realizada no novo marco regulatório de IFA, vamos focar agora nas alterações já realizadas pela RDC 301, e que entram em vigor nos próximos dias.

Vamos começar pelo Art. 178, que descreve de maneira geral o que deve ser considerado para a seleção, qualificação, aprovação e manutenção de fornecedores de matérias-primas.

"Art. 178. A seleção, qualificação, aprovação e manutenção de fornecedores de matérias-primas, juntamente com o seu processo de compra e aceitação, devem ser documentados como parte do sistema de qualidade farmacêutica.
§1º O nível de supervisão deve ser proporcional aos riscos apresentados pelos materiais individuais, levando-se em conta a sua origem, o processo de fabricação, a complexidade da cadeia de suprimento e a utilização final a que o material é colocado no medicamento.
§2º A evidência da aprovação de cada fornecedor/material deve estar disponível.
§3º A equipe envolvida nessas atividades deve possuir um conhecimento atualizado sobre os fornecedores, da cadeia de suprimento e dos riscos associados envolvidos.
§4º Sempre que possível, as matérias-primas devem ser adquiridas diretamente do seu fabricante."

Perceba que o Art. 178 não trata exclusivamente de IFAs, mas sim de matérias primas em geral, ou seja, considerando também os excipientes. 

Em nenhum ponto do Art. 178 'auditorias' são citadas, mas sim fica claro que a complexidade do processo de seleção, qualificação, aprovação e manutenção deste fornecedor deve levar em consideração fatores como sua origem, processo de fabricação, complexidade da cadeia e a utilização final. 

Isso pode ser interpretado como: 'podem existir diferentes tipos de qualificação destes fornecedores, que não consideram obrigatoriamente a realização de uma auditoria in loco.' 

Diferentemente, quando falarmos de IFAs, é necessário ler este dispositivo em conjunto com Art. 180, transcrito abaixo:

"Art. 180. Para a aprovação e manutenção de insumos farmacêuticos ativos os itens seguintes são necessários:
(...) 
§3º Auditorias devem ser realizadas junto aos fabricantes e distribuidores de insumos farmacêuticos ativos a fim de confirmar que estes estejam cumprindo com as boas práticas de fabricação e os requisitos das boas práticas de distribuição.
§4º As auditorias de que trata o parágrafo anterior podem ser realizadas pela própria empresa ou por meio de uma entidade que atue em seu nome, nos termos de um contrato.
§5º As auditorias devem ter duração e escopo adequados para assegurar que seja feita uma avaliação completa e clara das BPF; deve-se dar atenção especial ao potencial de contaminação cruzada de outros materiais no local."

Ou seja, para a aprovação e manutenção de fabricantes e distribuidores de IFAs, todos devem passar sim por auditorias in loco para a verificação do cumprimento das boas práticas relacionadas, enquanto que na norma anterior (RDC 17/2010), as auditorias não eram mandatórias.

Uma diferença importante é que agora o texto traz oficialmente a informação de que as auditorias podem ser realizadas tanto pela própria empresa fabricante do medicamento, como por meio de entidades ou 'consórcios', o que pode - desde que superados obstáculos relacionados à confidencialidade de dados - oferecer alternativas para redução de despesas com o processo, especialmente para as empresas de menor porte.

Dito isto, vamos falar agora sobre outro importante tópico: a transitoriedade.

Conforme o Art. 370, para matérias primas utilizadas em produtos já registrados, os requisitos do Art. 178 entram em vigor 1 ano após a vigência da norma, ou seja outubro/2020.

"Art. 370. Os requisitos do Art. 178 passam a vigorar para produtos legados 1 (um) ano após a vigência desta Resolução.
Parágrafo único. Entende-se por produtos legados aqueles já registrados."

Em uma primeira leitura, podemos entender que o prazo do Art. 370 é aplicável somente ao disposto no Art. 178. Porém, ao analisarmos em maior detalhe, fica claro que o Art. 180 é uma continuidade deste, uma vez que especifica melhor como o que deve ser contemplado no processo de aprovação já citado no caput e §2º do Art. 178. 

Desta forma, ao contrário dos pleitos realizados por algumas entidades e empresas do setor, para que fosse concedido um prazo de 24 meses para o cumprimento deste dispositivo das auditorias in loco, o texto publicado na norma considerou um prazo de apenas 1 ano, o que tem grandes chances de ser insuficiente. 

Em resposta a esta solicitaçãode dois anos de pleito, em apresentação realizada pela Anvisa, no final de setembro/2019 foi exposto que: "Não é necessária transitoriedade pois a Anvisa não definirá um período máximo para a conclusão das auditorias relacionadas a produtos legados".

Adicionalmente, durante esta mesma apresentação, foi colocado que:

"Cabe às empresas, por meio do processo de gerenciamento de risco e dos resultados das avaliações periódicas de qualidade (dos produtos; das matérias-primas quando do recebimento/em processo; dos desempenhos dos fabricantes/fornecedores), definir as frequências de execuções de auditorias (in loco). (...)No caso dos processos legados, no tocante à atividade de qualificação de fabricantes/fornecedores, por meio de uma avaliação de risco, as empresas devem definir a matriz de criticidade; definir frequências; planejar as atividades e executar o cronograma estabelecido para as auditorias in loco.

Dentro de um racional técnico, a expectativa da Anvisa é que os fabricantes/fornecedores de matérias – primas críticas venham a ser os primeiros a ser auditados."

Todas estas são informações importantes e que, sendo de fato o entendimento tanto da Agência como das Visas Locais, não devem resultar em grandes transtornos durante as inspeções de rotina nas indústias farmacêuticas que muit provavelmente não conseguirão auditar in loco 100% de seus fornecedores de IFA em um ano. Mas que poderão sim, contar com um cronograna de auditorias, elaborado com base em avaliação de risco internas.

III. Resumo:

1. A CP 683/2019 exige auditoria in loco 'apenas' para os casos de registro de novos medicamentos ou inclusão/substituição de fabricante de IFA.
2. A RDC 301/2019 traz o novo requisito de obrigatoriedade de realização de auditorias in loco em TODOS os fornecedores de IFAs, quer sejam fabricantes nacionais, internacionais ou distribuidores.
3. Para as auditorias in loco solicitadas pela CP 683/2019, está proposto um prazo de transitoriedade para produtos que já estejam em desenvolvimento no momento da publicação da RDC e que sejam peticionados em até 3 anos após a publicação da norma.
4. Para as auditorias in loco solicitadas pela RDC 301/2019, existe um prazo de transitoriedade de 1 ano, conforme Art. 370.
5. O disposto nas CPs de IFA ainda podem sofrer alterações de acordo com as contribuições a serem enviadas (Prazo: 22/10/2019).
6. O disposto na RDC 301 entra em vigência em 06/10/2019. 
7. É imprescindível que o entendimento sobre a não definição de um período máximo para a conclusão das auditorias relacionadas a produtos legados, bem como aceitação de cronogramas de auditoria, conforme apresentado pela Anvisa, seja harmonizada por todas as visas locais para que não existam problemas nas inspeções de rotina.
8. Sendo o mesmo critério aplicado às inspeções em plantas internacionais de medicamentos de parceiros, é importante que a empresa no Brasil responsável pela solicitação da CBPF informe parceiro sobre o requisito. 

Sobre a Autora:

Maiara Rigotto, é uma profissional de assuntos regulatórios com dez anos de experiência na representação e defesa dos interesses de indústrias farmacêuticas estabelecidas no Brasil, através de seu trabalho em associações representantes do setor. Atualmente vive na Alemanha e no intervalo de suas atividades rdárias, desenvolve o projeto de compartilhamento de informações e fomento de uma rede de contatos e discussões entre colaboradores de assuntos regulatórios no Brasil através do projeto @Regulatory Drops.